O Pires. O final do verão já estava sendo anunciado e, numa manhã um pouquinho mais fresca, acordei mais cedo e, junto com meu companheiro de surf, Eduardo Santos, o Edu, chegamos por volta das 07h na Praia do Campeche. O dia estava lindo, céu azul, uma brisa gostosa de terral e, importante, o mar muito bonito – parecia uma piscina com água azul esverdeada, com a possibilidade de surfarmos ondas maravilhosas e muito longas. Apesar de bonito o mar não estava bom, pois as ondas quebravam uma por cima da outra. Analisamos um pouco e nos preparamos para entrar na água. Nesse momento, me dei conta que estava com a prancha errada – a do uso contínuo havia ficado no apartamento da praia; estava com uma prancha bem maior do que a habitual, ideal para ondas grandes. O problema é que o mar estava médio e, ao usar uma prancha maior, se ela facilitaria muito na hora de remar, dificultaria bastante no momento de fazer as manobras. Outro detalhe importante: como era uma prancha de pouco uso, não havia um pequeno cabo que prende a cordinha à prancha – também conhecido como fieira. Tive que improvisar com uma alça de papelão retirada de uma bolsa de shopping center. A princípio, o problema fora resolvido com certa facilidade, mas eu sabia que estava prendendo minha cordinha com um pedaço de papel enrolado. Quando estávamos entrando na água encontramos com David Husadel, um amigo de longa data, que já estava saindo do mar, junto com seu filho Pedro. Patrícia, que já foi sua esposa e a filha Moana também estavam na praia – o casal se separou mas a família continua unida, com muito respeito e uma grande amizade. O pai e o filho embarcariam em algumas horas para o Hawaii. Davizinho, que já fora, por várias temporadas, o maior destaque brasileiro nas perigosas ondas hawaiianas, agora estaria, literalmente, ensinando o caminho das pedras, ou melhor, dos corais ao herdeiro. Aquela manhã tinha ares especiais. David profetizou: “o mar está lindo, porém ruim... As maiores estão quebrando sobre as menores, se acertar, vai ficar fantástico”. Entramos na água cheios de esperança e procuramos pelas ondas, mas o mar realmente não oferecia nada de bom. Trinta minutos haviam se passado e não havíamos surfado uma onda sequer. E o que é pior: na primeira que peguei, por estar desacostumado com a lentidão da prancha maior, escorreguei, perdi o equilíbrio e, em câmera lenta, caí - a cordinha esticou e arrebentou a fieira de papel. Depois de uma bela nadada naquela manhã, finalmente peguei minha prancha e fui até um barraco de pesca pedir ajuda. Getúlio, o dono, estava concertando a rede, assim que falei da minha necessidade ele largou o que estava fazendo e atenciosamente fez questão de colocar uma fieira de nylon na minha prancha. Lembrei a ele que há muitos anos, naquele mesmo barraco, o Seu Deca, seu pai, havia me ajudado, como ele, e que sempre que me via me tratava com muito carinho. Agradeci de coração e, com a prancha bem firme no pé, voltei ao mar. Somando tudo isso já havia se passado um bom tempo e nada de pegarmos as ondas boas. Assim que me posicionei lá no “out side”, depois da arrebentação, o mar começou a melhorar e, as longas e bonitas, finalmente a aparecer. As maiores e melhores, porém, sempre encavalavam e quebrando-se nas costas das menores. Acho que vale a pena dar uma informação: a praia do Campeche oferece uma das melhores e mais longas ondas do Brasil – nos dias bons é possível percorrer mais de 300 metros numa ondulação que, muitas vezes, é maior, melhor e mais perigosa na parte final do que no início. Ao contrário das outras praias, onde as ondas quebram em direção à areia, ali elas passam de lado. Com a ilha do Campeche a cerca de 2 quilômetros da costa, nos dias de mar grande forma-se um grande rio – a correnteza é muito forte. Normalmente se entra por uma parte da praia e se sai a cerca de 500 metros de distância daquele ponto. Por sinal, esta é a minha praia preferida e tenho muito orgulho de ter sido um dos seus desbravadores e descobridores, em 1976, época das pranchas de uma quilha, e de ser um dos poucos que surfaram nos tempos áureos e que, passadas mais de 3 décadas, ainda perdem o sono, se acordam no meio da madrugada, sem despertador, nos dias mais frios, para entrar no mar assim que a luz do sol raiar. Mas, voltando a nossa manhã, depois de surfar algumas boas e bem longas ondas, já satisfeito e agradecido, num certo momento, resolvi me posicionar mais ao fundo. Fechei os olhos, abri os braços, agradeci, rezei e orei. Aproveitei um momento que o mar estava mais calmo e comecei a me perguntar qual seria o atributo que poderia se manifestar em mim naquele momento e deixei a pergunta no ar, sem responder. Depois de alguns minutos agradecendo, contemplando e orando, surgiu uma palavra forte na minha consciência, que era um atributo relacionado à coragem e a luz. Estes atributos divinos me geravam uma sensação muito forte de proteção, de segurança, de paz e de união. Fiquei naquele “estadão” de luz durante alguns minutos – é difícil descrever, mas parece como estar meio bêbado ou drogado sem ter bebido nada ou usado qualquer tipo de droga, sem julgar, sem ligar para ser julgado, sem se preocupar com o que tem que ser feito ou com o tempo para fazer qualquer coisa. E fiquei ali... De repente, percebi que uma ondulação maior, estava se formando e, na frente dela, vinha uma pequena onda. Pude perceber que, pela formação, pela velocidade e pelo ângulo elas, ao contrário de todas as outras, não se encavalariam - se uniriam e formariam uma única onda muito forte, pois a profundidade onde quebrariam seria em relação ao tamanho da onda que estava na frente. Naquele momento, eu estava muito bem posicionado, tendo ainda o equipamento certo para entrar na onda – uma prancha maior. Utilizei a maior flutuação para ganhar velocidade e, quando comecei a subir na prancha, em câmera lenta, percebi que a onda era extremamente perigosa – a água transparente e a maré baixa mostravam que a areia estava muito próxima e, se eu caísse de mal jeito poderia me machucar seriamente. Numa fração de segundo, quando estava me levantando na prancha, lembrei do atributo de coragem e de luz e, ao invés de entrar em dúvida se conseguiria passar por aquela parte de perigo e de medo de me machucar, instintivamente relaxei, estiquei as pernas e tão logo a onda começou a quebrar entubei - de pé. Saí dessa sessão e, quando já estava pronto para comemorar, uma outra sessão – igualzinha - se formou na minha frente. Não tive muito tempo para pensar e agora, se já estava arriscado, ficara ainda mais, pois a velocidade havia aumentado bastante. Novamente veio aquela sensação de medo e dúvida: “será que vai dar? Será que eu vou me machucar? Não é melhor sair agora?” Nesse instante o atributo de coragem e de luz ressoou novamente e então relaxei, confiei e segui. Como estava de pé, o que é bem mais difícil para manter o equilíbrio dentro de um cilindro em movimento, pensei comigo: “Ah...sabe de uma coisa, vou assim mesmo!” E fui! Alguns segundos se passaram e saí daquela segunda sessão completamente alucinado, sem saber direito se era pela onda em si, pela minha coragem de ter enfrentado o medo, por ambos ou por estar num estadão de luz e poder e sincronia total com a natureza. Acabou? Não! Uma nova sessão da onda formou-se igual as outras, pensei: “vou de pé de novo!” E fui! Entrei novamente no mesmo embalo – ou melhor, agora bem mais embalado. Primeiro porque não havia caído nas outras sessões e segundo, a velocidade era muito maior. Nessa parte, porém, depois de andar um pouco por dentro da onda, deu para perceber que ela fecharia completamente logo a frente e seria impossível de continuar – já havia percorrido uma distância e tanto - então, virei a prancha na direção da praia, evitando assim que a onda me jogasse de lado na rasa bancada de areia. Mesmo na frente da onda, vindo na direção da praia, ela quebrou tão forte que o impacto da água jogou longe a rabeta da prancha. Voei, virei, revirei, rolei na areia várias vezes, no meio da espuma, rolando e rolando, com muita pressão – quem surfa no Campeche sabe exatamente o que estou falando. Quando saí daquele caldão, com a água na cintura, berrava feito louco, por tudo que havia acontecido naqueles longos e inesquecíveis segundos. Não me pergunte a distancia nem quanto tempo foram os tubos. O relógio da emoção, Kairos, literalmente pára o tempo e o espaço e você fica meio que perdido porque o tempo muda completamente de relação com a distância. A onda havia deixado um longo traçado marrom no meio de uma água muito clara, o que demonstrava a força com que havia quebrado. Aproveitei e saí d’água num êxtase total. Mas, como toda boa estória de surfistas, pescadores e outros mentirosos, não havia ninguém na praia naquele momento - nenhum surfista – conhecido ou desconhecido, ou alguém que eu pudesse perguntar se havia visto alguma coisa vermelha (a cor da minha prancha) que tivesse chamado a atenção, no minuto anterior no mar. Foi o melhor tubo da minha vida e também a melhor onda – podendo falar com a experiência de ter surfado ondas de sonho em algumas das melhores e mais famosas praias do mundo. Mas, aquela minha fantástica onda ninguém viu. Infelizmente ninguém estava lá e, apesar de ser uma sensação muito pessoal seria muito gratificante se alguém pudesse comentar o feito. Quando estava saindo da faixa areia da praia, subindo uma pequena rampa de asfalto, levantei os olhos para ver se encontrava alguém, mas... Ninguém estava por lá. Quando estava baixando os olhos reparei que um soldado, usando uniforme de verão, estava junto a rampa, de frente para o mar, cumprimentei-o com leve sorriso, e continuei meu caminho até o carro, que havia ficado no estacionamento privado, um pouco mais para trás. Durante aqueles passos lembrei que pouquíssimas pessoas conseguiram entubar três vezes, na mesma onda, no Campeche, a praia mais difícil de realizar esta que é considerada a manobra supra-sumo do surf. Em mais de 30 anos, acho que somente Felipe Martins, do Rio, em 1979 - e foram 3 tubos, sendo que o último um pouco agachado – eu vi esta onda. Ou seja, 3 tubos na mesma onda era uma espécie de um record que nunca fora batido. E mais, no dia em que o Felipe fez esta proeza haviam muitos surfistas na praia e vários viram o feito. Foi algo super comentado na época e ele era um especialista no assunto. No meu caso não havia nenhuma testemunha e esse feito jamais poderia ser comentado dessa forma – até porque me chamariam de mentiroso com toda certeza. (provavelmente você deve estar pensando isso nesse momento). Por isso mesmo, quando cheguei no carro, sabendo que meu parceiro de surf, o Eduardo “Ratinho” havia saído com uma onda fraca, pequena e ruim, tentei me controlar ao máximo. Mesmo sabendo que seria muito difícil dele acreditar e com a minha reputação em jogo, comentei sobre a minha “saideira”. Como ele não acreditaria de jeito nenhum em 3 tubos de pé, falei havia entubado duas vezes – uma meio “relaxadão” e a outra mais agachadinho. Ele ficou ouvindo sem comentar nada e seu olhar distante na direção do mar (não vendo nada demais) já denunciava uma certa descrença – acho que não me chamou de mentiroso e me mandou embora porque é meu amigo e estava de carona. Troquei de roupa, arrumamos tudo e, quando saíamos do estacionamento, tirando uma onda com Giovani, o administrador, que também surfa, perguntei se ele cobraria de alguém que havia conseguido entubar duas vezes – na mesma onda - naquele mar. Ele se inclinou para dentro do carro, comentou algo, os dois se entreolharam, deram um sorrizinho e não resistiram - começou a gozação. Logo eles estavam dando muitas gargalhadas em alto e bom som, fazendo pouco caso do que eu havia falado. Cheguei a me arrepender de ter feito tal comentário. Quem sabe você esteja se perguntando o que isso tudo tem a ver com “O Pires”. Bem, enquanto eles riam sem parar da minha cara, o soldado, que estava encostado no poste, a cerca de uns 50 metros, naquele exato momento apareceu do nada. Aproximou-se e nos abordou. Pensei na hora que ele pediria os documentos do carro ou, pelo velho trauma do Delegado Elói, que dizia: “nem todo surfista é maconheiro, mas todo maconheiro é surfista” pensei que tomaríamos uma “geral” – se bem que eu e o Edu não fumamos nem cheiramos. Inclinando-se para dentro do carro pela porta do carona chegou dizendo: “Com licença..., meu nome é Soldado Pires e gostaria de falar um pouquinho. Vi que vocês estão rindo da onda que ele disse que surfou. Olha, eu estava ali na frente e deu pra ver muito bem... Você estava com uma prancha vermelha, não é mesmo...? E assim que você subiu na prancha logo entubou, não foi essa...? Eu contei bem, você sumiu quatro vezes – a primeira foi logo que entrou na onda, depois mais duas vezes na corrida e, na última, aqui na frente, você tentou sair, virou para a praia e a onda lhe engoliu, não foi...? Eu vi bem, era uma onda linda, muito bonita e você correu certinho por dentro dela...Parabéns!” Para falar a verdade, até aquele momento eu ainda não tinha uma descrição tão clara e precisa, mas o soldado Pires ajudou a lembrar alguns detalhes que eu havia esquecido – por exemplo, eu achava que eram 3 tubos e, pelo que ele foi descrevendo, lembrei das vezes que o atributo havia vindo até minha consciência e a onda foi se refazendo na minha consciência. Perguntei: Qual o seu nome mesmo? Soldado Pires! Continuei: “Soldado Pires, o senhor não tem idéia do quanto esse seu testemunho é importante para o surf catarinense, posso lhe procurar para gravarmos uma entrevista?” “Estou às suas ordens.” Ainda emocionado acabei esquecendo de pegar o seu telefone, mas guardei bem seu nome – Pires. Soldado Pires. Bati no joelho do meu velho e fiel parceirinho de mais de 20 anos o e disse: “Eu falei um tubo e meio porque sabia que não irias acreditar, mas quatro tubos, de pé, no Campeche, com soldado, com farda e tudo, de testemunha... Sinto muito, mas vás ser obrigado a acreditar!” Geralmente é uma pessoa comum, um civil que é a testemunha de um caso que a policia precisa elucidar. Essa era a primeira vez que a policia seria a testemunha para livrar a cara de um surfista mentiroso. Meses mais tarde consegui o telefone do soldado Pires na central de policia da Praia do Campeche. O guarda de plantão era seu primo e naquele instante já me colocou em contato com ele pelo celular. “Soldado Pires, lembra que um certo dia, no fim do verão, no estacionamento do Campeche, algumas pessoas falavam numa camionete azul marinho sobre uma onda e o senhor interrompeu...? “Ah...sei sim, você é aquele da prancha vermelha que entubou 4 vezes não é mesmo...? É engraçado, mas na temporada toda, nos 90 dias da Operação Veraneio, só trabalhei 3 dias no Campeche Em que posso ajuda-lo?”Quando poderemos marcar nossa entrevista? Não gostaria que você entendesse essa mensagem como uma maneira de mostrar o meu feito mas sim que procurasse entender como feitos como este são feitos. Não se trata de uma performance mas sim de um estado de proteção que é muito descrito por A.H.Almaas, no texto A Proteção Básica, que fala claramente que, num certo estado você não tem a menor dúvida sobre sua capacidade e que, aconteça o que acontecer você tem certeza absoluta que aquilo era o melhor que poderia acontecer naquele momento. Eis o que fala Almaas: “O que faz a diferença é a presença de um certo tipo de confiança que chamamos de ‘basic trust’. É uma confiança implícita de que o que é ótimo ocorrerá, o sentimento de que o que for que ocorra estará bem. Há um saber que tudo está bem, que não há erro. É a confiança de que a realidade, afinal de contas, é boa, que a natureza, o universo e que tudo que existe é bom e confiável por natureza (misericórdia, amor, piedade, perdão e não dureza ou castigo. É graça, é confiança de que o que ocorre é o melhor que pode ocorrer. Basic Trust é uma confiança não conceitual na bondade do universo e de que fomos bem criados. Uma confiança implícita e inquestionável de que há algo acerca do universo, da natureza humana e da vida que é inerente e fundamentalmente bom, amoroso e que nos deseja o melhor. Esta confiança inata e não formulada na vida e na realidade se manifesta como o desejo de dar este mergulho no abismo, que é uma ilusão; se soltamos o saber relativo encontramos o Ser único. Quando esta confiança é profunda, se manifesta na forma como se vive, não necessariamente no que sentes ou como pensas. O ‘basic trust’é experimentado como um inquestionável sentido de segurança, de estar a salvo, que está intrínseco na forma como se atua na vida. Não é a confiança em uma coisa, uma pessoa, uma situação, portanto não diminui pelas circunstâncias da vida. Em lugar disto te dá orientação implícita para todas as circunstâncias, que te permite relaxar diante delas. Dá gozo por estar livre do “stress” crônico da defesa. Sentes em teus ossos que estarás bem, ainda que os eventos, até este momento sejam decepcionantes ou dolorosos e até desastrosos. Consequentemente, tu vives tua vida de forma que naturalmente brincas com o abismo, sem sequer racionalizar que estarás bem, porque tens um sentir implícito de que o universo cuidará de ti. Tua vida se torna uma jornada espiritual, um saber que, se deixas de esforçar-te, se deixas de apoiar-te nas pessoas, nos objetos e nas crenças, as coisas estarão bem e que se converterão no melhor.”